terça-feira, 6 de outubro de 2015

Relações com Anísio Teixeira e Leonel Brizola fizeram de Darcy Ribeiro um dos expoentes das reformas educacionais no país


ILUSTRAÇÃO MATHEUS VIGLIAR

Helena Bomeny*
 
O encontro de Darcy Ribeiro com o educador Anísio Teixeira, na década de 1950, foi mais do que a ventura da aproximação entre dois amigos: produziu no antropólogo um verdadeiro roteiro de atuação pública e deu a ele o desenho de uma agenda na qual o tema da educação ocupou lugar primordial. “Anísio me ensinou a duvidar e a pensar”, lembraria Darcy.
 
No primeiro momento houve uma espécie de desconfiança mútua. Anísio, americanista, urbano, envolvido com os problemas da educação e com a universalização desse direito, era uma das lideranças mais notáveis do Movimento dos Pioneiros da Educação Nova – que arregimentou intelectuais na década de 1920 em caravanas por reformas educacionais em praticamente todos os estados brasileiros. Darcy, com as lentes voltadas para a questão indígena (herança de sua aproximação com o marechal Cândido Rondon), adentrava o interior brasileiro em busca do que supunha traduzir a alma nacional. Duvidava do que considerava uma educação comunitária, aquela preconizada na América do Norte, fruto da cultura protestante, que obrigava os fiéis à leitura da Bíblia, situação em nada comparável com o Brasil. 
 
Quando seus percursos se cruzaram, iniciou-se um intenso caminho em comum. O encontro aconteceu no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), criado por Anísio, de onde nasceria o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), que contou com participação ativa de Darcy. A parceria se afinou na criação da Universidade de Brasília (UnB) e foi consolidada quando Darcy Ribeiro assumiu o Ministério da Educação e Cultura (MEC), sendo substituído por Teixeira na reitoria da UnB. O golpe de 1964 retirou o antropólogo não só do governo João Goulart (de quem era chefe da Casa Civil) como da Universidade do Brasil, onde lecionava desde 1956. 
 
A notícia da morte abrupta de Anísio Teixeira, em 1970, alcançou Darcy no exílio. Ao retornar ao Brasil definitivamente em 1978, ele reiniciou a cruzada pelo ensino básico, e cultivaria ao longo de sua vida o patrimônio herdado da união com o renovador da educação no Brasil. Pode-se dizer que Darcy Ribeiro foi o último expoente da Escola Nova – não fez parte do movimento, mas manteve-se fiel à causa que mobilizou uma de suas lideranças mais notáveis.
 
Os últimos 15 anos de sua vida foram marcados por outra parceria igualmente impactante: com Leonel Brizola, Darcy obteve carta branca para prosseguir em sua utopia escolanovista, escrevendo um dos capítulos da reforma educacional mais conhecidos do país. Em 1982, Darcy elegeu-se vice-governador do Rio de Janeiro pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), na chapa encabeçada por Brizola. A convivência o fez consolidar seu discurso popular, embasado não mais nas Minas Gerais, sua terra de origem, mas na tradição rio-grandense e no que chamou de “apreço pela classe de baixo” daquela elite política, traço visível em Vargas, João Goulart e Brizola. 
 
Tornou-se lugar comum na memória carioca e fluminense confundir o programa de educação dos governos Leonel Brizola com os CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública). Mas o Programa Especial de Educação (PEE) era mais ambicioso do que isso. O objetivo era garantir à população o direito a um ensino gratuito moderno, reestruturado do ponto de vista pedagógico e tecnologicamente aparelhado. Previam-se metas assistenciais (como uniformes, calçados e melhoria da qualidade da merenda) e pedagógicas (como aumento da carga horária diária para cinco horas e revisão de todo o material didático), treinamento dos professores e melhoria de suas condições de trabalho, reforma e conservação das escolas e do mobiliário e novos projetos educacionais – voltados à pré-escola, à criação de Centros Culturais Comunitários e à educação juvenil noturna. Havia entre os idealizadores a convicção de que a democratização da educação teria que minimizar as carências essenciais daqueles estudantes que provinham de situações sociais desprotegidas. 
 
Os CIEPs foram concebidos como estabelecimentos que desenvolveriam uma extensa programação de atividades escolares e assistenciais para crianças e jovens, das 7h30 às 17h. Havia a figura do animador cultural – pessoa da comunidade capaz de trabalhar a cultura local junto com os alunos. Personagens mais próximos dos estudantes, despidos da “face professoral”, estimulariam padrões de interação entre crianças e educadores, recriando possibilidades de aprendizagem. Tudo começava com a cultura comunitária, suas manifestações, seus artistas sendo mobilizados para a rotina escolar. Os cuidados se estendiam à montagem de bibliotecas, salas de estudo e espaços de lazer com profissionais treinados para a jornada de tempo integral. Como parte da estrutura física do prédio, previam-se dormitórios para abrigar “pais sociais”, que se responsabilizariam, em troca da moradia, pelo acompanhamento escolar de crianças que também morassem na escola.
 
“Ao invés de escamotear a dura realidade em que vive a maioria de seus alunos, proveniente dos segmentos sociais mais pobres, o CIEP compromete-se com ela para poder transformá-la. É inviável educar crianças desnutridas? Então o CIEP supre as necessidades alimentares dos seus alunos. A maioria dos alunos não tem recursos financeiros? Então o CIEP fornece gratuitamente os uniformes e o material escolar necessário. Os alunos estão expostos a doenças infecciosas, estão com problemas dentários ou apresentam deficiência visual ou auditiva? Então o CIEP proporciona a todos eles assistência médica e odontológica”, proclamava Darcy Ribeiro.
 
Durante oito anos o programa de Brizola e Darcy ergueu 507 CIEPs e alcançou uma repercussão pública pouco comum em assuntos educacionais. A figura política do governador e a personalidade apaixonada e nem sempre ponderada do vice, a marcha frenética com que os CIEPs eram construídos e a confecção de um programa complexo implantado por meio de uma secretaria extraordinária de Educação despertaram reações positivas e críticas, vindas de diferentes extrações da comunidade intelectual e das hostes políticas adversárias. Uma intervenção pedagógica completamente ungida na esfera política criou mal-estar na comunidade dos educadores. O argumento era que o PEE havia se transformado em programa político, em detrimento da melhoria do sistema educacional. A cada matéria crítica contrapunha-se a voz de Darcy Ribeiro, sustentando a continuidade no tratamento de uma escola pública que até aquele momento, no Brasil, estava longe de cumprir o papel que a ela deve ser atribuído em uma sociedade democrática. 
 
Entre os educadores a reação foi igualmente virulenta. Ficaram expostos os pontos de fragilidade do PEE, que já nascia como programa de massa, extenso, volumoso, caro e sem condições de funcionamento na medida e na velocidade com que se implantava. Entre os cientistas sociais, a nota crítica foi para o populismo implicado na política pública assistencialista do governo Brizola. Pesava o estilo de liderança de ambos os condutores: personalista, voluntarista, demagógico, inconsequente. 
 
Talvez por ter acumulado um conjunto tão expressivo e abalizado de críticas, o brusco desmonte do programa pelo governo seguinte, de Moreira Franco, não produziu qualquer reação capaz de impedir a descontinuidade do esforço e do investimento até então dispensados. Os CIEPs foram desmontados como estruturas de ensino em horário integral, e as construções foram interrompidas. A rede pública de ensino voltaria ao sistema convencional, agora com o ensino fundamental municipalizado.
 
Ainda hoje os CIEPs permanecem como referência nas discussões mais importantes que embasam a tomada de decisões de políticas educacionais no Rio de Janeiro e no Brasil. O tempo de permanência das crianças nas escolas continua sendo um tema estratégico. Sempre que se renovam propostas de ensino em tempo integral e integração entre escola e comunidade, presta-se uma homenagem, mesmo que implícita, à obra de grandes personagens da história da educação no Brasil. Darcy Ribeiro está entre eles, ao lado de seus parceiros Anísio Teixeira e Leonel Brizola. 
 
*Helena Bomeny é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, autora de Intelectuais da Educação (Zahar, 2001); Darcy Ribeiro. Sociologia de um indisciplinado (Editora da UFMG, 2001), e organizadora de A Escola que faz Escola (FGV, 2002).
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Fonte: Revista História. com.br http://rhbn.com.br/secao/retrato/em-boa-companhia

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