quarta-feira, 29 de abril de 2015

Onda conservadora: nem tsunami, nem marolinha

Marcus Ianoni*

A mudança social pode ser progressiva ou regressiva. É progressiva quando a revolução democrática avança, criando e ampliando direitos e conquistas da cidadania em várias esferas, como a civil, a política, a social, a econômica, a cultural, a ambiental, a de gênero, a racial etc. E é regressiva quando a roda da conjuntura – que pode abranger um tempo histórico menor ou maior –, movida pela ação das forças sociais contextualmente determinadas, que se relacionam politicamente através de lutas, disputas, acordos, alianças, composições e oposições, gira para contrapor-se às tendências igualitárias. Mas, além das forças sociopolíticas, o Estado, a elas articulado, também desempenha um papel-chave na mudança social.

A conjuntura brasileira atual caracteriza-se pela emergência do conservadorismo, que surge como uma reação de classes, frações e estratos sociais às transformações progressistas implementadas no país a partir da vitória eleitoral de Lula, em 2003. A conquista do governo pelo principal líder do PT, em contexto de crise das políticas neoliberais na América Latina, alterou a relação de forças e propiciou a conformação, ainda que limitada, de um bloco sociopolítico e político-institucional de corte social-desenvolvimentista, que impactou na emergência de uma nova safra de políticas públicas. Seguiram-se uma série de mudanças institucionais e socioeconômicas, que produziram inclusão social, através do mercado e das políticas sociais, ampliação de direitos e o fortalecimento de mecanismos de interação democrática entre Estado e sociedade.

No governo Dilma 1, houve um relativo desarranjo dos nexos democrático-institucionais que suportavam a aliança social-desenvolvimentista. Além disso, outros três problemas ocorreram: os escândalos de corrupção (julgamento da Ação Penal 470 no STF e Operação Lava Jato), o baixo crescimento e o acirramento do conflito distributivo, cujas primeiras expressões públicas mais claras foram as manifestações de junho de 2013 e os rolezinhos de janeiro de 2014. Apesar das quatro vitórias sucessivas nas eleições presidenciais, o PT e o governo da presidenta Dilma, mandatária reeleita em um contexto de acirrada disputa contra a coalizão neoliberal liderada pela grande mídia, foram acossados pela direita liberal-conservadora, que, como não é novidade, possui bases sociopolíticas e político-institucionais na sociedade brasileira. Apesar da reeleição de Dilma, o Congresso eleito em outubro de 2014 e empossado em fevereiro desse ano tem, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), o perfil mais conservador de todo o período pós-1964. Aumentou o número de parlamentares militares, religiosos e ruralistas, por exemplo, grupos com perfil político predominantemente conservador. No caso dos religiosos, o conservadorismo abriga-se, sobretudo, na bancada evangélica. E o número de deputados federais comprometidos com as causas sociais caiu.

Os conservadores têm apego às instituições sociais e políticas tradicionais e resistem às mudanças. Na história contemporânea, ocorreram várias reações conservadoras, como, por exemplo, na Europa, a partir do fim das Guerras Napoleônicas, com um conteúdo monárquico, antiliberal e antinacionalista e nos EUA, no século XX, contra as reformas progressistas e o New Deal. O referido conservadorismo europeu, aberto pelo Congresso de Viena, foi um tsunami continental.

No Brasil, a onda conservadora, que tem no presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), uma importante alavanca institucional, entre outras façanhas, se opôs à Política Nacional de Participação Social e está dando asas a projetos de lei como o Estatuto da Família, que vai de encontro aos direitos dos casais homossexuais, o Estatuto do Nascituro, que questiona pesquisas com células tronco, quer incluir o aborto na categoria de crime hediondo e aprovar a proposta do Dia do Orgulho Hetero, reduzir a maioridade penal, constitucionalizar o financiamento empresarial eleitoral e instituir o chamado distritão, um sistema eleitoral ainda mais personalista e nocivo ao fortalecimento dos partidos que o atual. Uma agressiva frente conservadora se observa no modo como a grande mídia e setores da oposição estão abordando os problemas de corrupção, especialmente a Operação Lava Jato. Enquanto os holofotes deixam em segundo plano a Operação Zelotes, que envolve bilionárias quantias de sonegação e fraude feitas por empresas e elites da burocracia pública, toda uma ofensiva é feita para associar a corrupção ao partido e aos governos que introduziram as mudanças progressistas que hoje estão em risco, ou seja, ao PT, Lula e Dilma. Como se não bastasse, o conservadorismo avança em duas frentes estratégicas, de grande impacto na economia: por um lado, na macroeconomia, com a retomada das altas na taxa básica de juros e o ajuste fiscal na gestão pública, por outro, na terceirização nas relações de trabalho.

Se hoje ainda não há um tsunami por aqui, também não se trata de mera marolinha. O conservadorismo representa uma coalizão de diversos interesses, incluindo o rentismo e a financeirização, nacional e internacional, a ofensiva do capital globalizado contra a força de trabalho regulamentada, a cobiça pela gestão neoliberal da Petrobras, à qual o modelo de partilha se opõe, a manutenção do status quo da desigualdade que alguns estratos das classes médias tradicionais não querem contribuir para alterar, certa fé obscurantista de lideranças religiosas etc. O que fazer para enfrentar essa onda conservadora é a grande questão a ser debatida e respondida pelas forças progressistas, que alavancam a revolução democrática.

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador das relações entre Política e Economia.
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Fonte: Jornal do Brasil

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