Por Renato Janine Ribeiro*.
Circulou muito no Facebook uma
recomendação do blog "Viajando com os filhos", que consistia em conselhos para
lidar com a babá. A autora, que em São Paulo se hospeda num dos melhores hotéis
da cidade, discutia passagem, hospedagem, comida e bebida de sua empregada. O
texto é detalhista e chocante. A patroa chama a babá de gênero de "terceira
necessidade" e fala dela como se fosse um animal. Curiosamente, não parece
mesquinha: paga um excelente quarto de hotel para a empregada; o problema é que
não tem noção de como lidar com um ser humano.
Por que discutir esse tema
numa coluna dedicada à política? Porque, sem querer, o texto - que foi retirado
do ar, quando o blog se deu conta da péssima publicidade que angariou com ele -
mostra as dificuldades para se aceitar algo que, reconheço, é difícil: a
inclusão social. Não me juntarei àqueles que - com razão - condenam a autora. O
que quero entender é o que passa na cabeça de alguém que vive no privilégio e
não consegue sequer entender o que é a passagem ao mundo do direito. Ou que,
tendo a vantagem da riqueza numa sociedade com alto teor de exclusão, não
percebe que, um dia, isso acabará. Antes que me chamem de petista, é bom lembrar
que tal nível de exclusão acabou faz tempo nas grandes economias capitalistas.
Se a autora vivesse nos Estados Unidos, Reino Unido ou França, primeiro,
dificilmente escreveria o que escreveu; segundo, se o fizesse, pagaria por
isso.
O assunto faz lembrar a
declaração de Delfim Netto, em abril de 2011 (quem teve empregada doméstica, que
é um "animal em extinção", teve; quem não teve, não terá) ou o artigo de Danuza
Leão, de novembro, observando como viagens a Paris perdem o valor quando todos
podem fazê-la. Mas são casos bem diferentes. Com seu conhecido humor e
inteligência, o ex-ministro anotou um fato: os empregos domésticos se extinguem,
justamente porque uma pessoa cuidar da vida íntima de outra é quase humilhante e
por isso, nos países desenvolvidos, se encarece ou se extingue. Danuza Leão
dizia que há prazeres que dificilmente comportam o acesso de todos: o Louvre não
pode, gostemos ou não disso, receber 100 mil pessoas por dia. Daí, ela conclui -
o que endosso - que ler um livro pode ser bem melhor. Delfim e Danuza disseram
coisas pertinentes, ainda que a formulação não tenha sido feliz. Já o post da
blogueira não é reflexão, é sintoma, e suscita outra discussão.
A inclusão social mexe em nosso imaginário
Ao longo dos séculos e
milênios, o que hoje chamamos de inclusão social se estagnou, cresceu raramente
e com frequência recuou. Mas, nas últimas décadas, a integração dos miseráveis
na sociedade (civil? de consumo? a diferença é importante) se acelerou
intensamente - em muitos países. Aqui, em cinco anos do governo Lula, 50 milhões
passaram das classes D e E para a C. Esse aumento de justiça social impõe
mudanças de atitude radicais no interior da sociedade. Os mais vulneráveis se
fortalecem. Socialmente, o dado principal é que recusam o papel subalterno ou
subserviente que sempre foi o dos pobres em nosso país.
Se esse processo é amplamente
positivo, ele tem seus senões, também pensando no plano social. Um diz respeito
à própria condição dos ex-miseráveis. Eles parecem dar maior importância ao
aumento do consumo, e junto com ele ao do crédito e do endividamento, do que ao
acesso à educação e à cultura - da mesma forma, por sinal, que os gestores da
economia e da política. Daí que a conquista de espaços sociais pela nova classe
média continue frágil. Hoje, pode ser que muitos salários estejam subindo mais
porque a economia está aquecida do que porque os seres humanos, que
eventualmente chamamos de "mão de obra", se qualificaram como sujeitos de sua
existência. Mas há outro problema, eticamente mais grave. Para as classes
tradicionalmente ricas - ou "dominantes" - o ingresso em seu território de quem
era não pessoa é chocante. Isso não quer dizer que os privilegiados sejam
maldosos, de tão egoístas. O que falta é noção dos limites recíprocos que
constroem uma sociedade decente. Obviamente, não merece elogio, nem sequer pena,
quem age assim. Até porque essas pessoas, se viajam a países ricos, sabem que
não podem tratar dessa forma as pessoas lá, mesmo as menos ricas. Seguem então
um duplo padrão - assim como respeitam a lei de trânsito na Flórida e não no
Brasil. Mas quem deseja mudar a sociedade não pode ficar na condenação ou no
repúdio. É preciso compreender. Sem entender o que está ocorrendo, é difícil
agir para mudar. Este é um campo importante para a pesquisa.
Mesmo assim, há medidas
concretas e urgentes a tomar. Têm que ficar claros, para todos os brasileiros,
valores como a liberdade e a igualdade. Isso depende do "governo", dos órgãos de
defesa dos direitos humanos, do Ministério Público e do Judiciário mas, mais que
tudo, do esforço da sociedade. É preciso difundir a ética nas escolas. Ela não
pode ficar nas mãos só das Igrejas e das famílias; deve ser estudada, com uma
abordagem leiga e universal, no ensino básico, isto é, da alfabetização até a
conclusão do ensino médio. Deve haver também uma preocupação das empresas, que
são responsáveis por boa parte da socialização das pessoas. Uma corporação ou
organização não pode tolerar atitudes antiéticas de seus funcionários, sobretudo
de seus dirigentes. Estas são políticas públicas, não apenas estatais. Além
disso, politicas de combate aos privilégios devem ser adotadas - tanto de quem
usa um cargo público para levar vantagem, quanto de quem utiliza sua riqueza
para desprezar o próximo. Porque a batalha se trava, afinal, nos corações e
mentes.
* Renato Janine Ribeiro
é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico