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Lúcio Alves de Barros*
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Um problema que já deixou
de ser emergente no Brasil é o do trânsito. As pesquisas apontam que no período
natalino e nos finais de ano aumentam não somente os acidentes, mas também as
mortes e os prejuízos decorrentes delas. É lamentável que o país já saiba que
nestes períodos quem está atrás no volante ou nos bancos dos automóveis correm
grandes e pequenos perigos. A questão parece simples, mas não é. Vejamos pelo
menos três fenômenos.
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O primeiro é o grande
número de veículos que andam por aí. A frota de automóveis aumentou a ponto de
dificilmente se encontrar estacionamentos ou melhores condições para as ruas e
rodovias. O montante de carros, obviamente não pode ser o culpado por tamanha
vergonha que são os números das mortes oriundas nos acidentes de trânsito no
Brasil. Mais carros significaram mais congestionamentos e neles os
proprietários em quatro rodas andam mais devagar. Contudo, é um problema e
diversos países já estão levando a efeito a renovação da frota ou o rodizio dos
automóveis na cidade.
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O segundo fenômeno é o
fetiche que carrega este “patrimônio” superestimado no Brasil. O carro ainda é
sinônimo de status e revela, em larga medida, o tamanho do falo do dono. A
sociedade falocrática dá valor inclusive à marca, ao modelo e à potência do
carro. Chega ao absurdo de chamar de “popular” automóveis que tem o mesmo preço
de um apartamento ou de um curso superior em faculdade privada. No Brasil,
comprar um carro significa para muitas pessoas “vencer na vida”, até porque
vale o aparecer não o ser ou o ter. Aparentar que tem posses dirigindo pela
cidade é um fetiche grotesco, principalmente, quando poucos sabem que na
verdade o empreendimento de quatro rodas está sendo pago em 60 ou mais
prestações.
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O último fenômeno foi
bem delineado no livro de Roberto DaMatta, “Fé em Deus e pé na tábua - Ou Como
e Por que o Trânsito Enlouquece no Brasil” (Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 2011), onde
o autor descreve com acuidade como o trânsito brasileiro retrata a configuração
de nossa cultura. Uma cultura hierárquica, autoritária, machista e desigual. Na
realidade, já sabemos que é de longa data este perfil social que aceitamos sem
grandes problemas. O curioso é que é no carro que o sujeito se transforma. De
acordo com o autor, é no automóvel e no trânsito que os brasileiros mostram
hodiernamente os dentes. Se existe um acidente, provavelmente há mulher no
meio. É possível beber um pouquinho de álcool e dirigir. Se a polícia pegar dá-se
um jeitinho para sair de fininho e devagarinho. Mais que isso, o brasileiro se
revolta quando o automóvel com menos potência lhe ultrapassa. E vale xingar e
mostrar dedos para o recalcitrante. No trânsito, é preciso ser "esperto",
andar rápido, “furar” filas, dar balão e saber se virar, mesmo tendo que
trapacear os impessoais sinais que pululam nas vias mais rápidas e perigosas.
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O argumento de Roberto
Da Matta é conhecido: no trânsito os brasileiros fazem da rua a sua casa e a
utilizam como se aquele espaço público fosse a extensão da própria moradia.
Neste sentido, é claramente aceitável buzinar onde não se deve, ultrapassar
onde não é permitido e colocar em perigo a vida dos outros, haja vista que não
existe um proprietário de automóvel que não se sinta mais dono da rua do que
qualquer outra pessoa. Essa cultura autoritária e hierárquica marca a ferro e
fogo as relações sociais no trânsito. O problema é que neste campo o erro pode
ser fatal. O Brasil ainda caminha lentamente no campo normativo e as leis ainda
são brandas em relação ao errante do volante. Mudanças em longo prazo podem ser
viáveis e possíveis. Mas, dificilmente mudaremos uma cultura que nasceu
capenga, distribuindo pessoas em camadas, produzindo seres humanos que se
sentem mais especiais que outros, tratando as pessoas não na sua diferença, mas
na indiferença. É difícil, diante do mencionado, acreditar que podemos ser
iguais no trânsito, pois sequer conseguimos ser impessoais e ter em pé de
igualdade os recursos disponíveis na sociedade. Pode até ser que muita coisa tenha
mudado nos últimos anos, mas quando se percebe a resistência da maioria das
pessoas em utilizar o transporte público ou mesmo a existência de políticas
públicas favorecendo o indivíduo em detrimento da comunidade é hora de desligar
o carro, fechar as portas e desistir, pois o Brasil não é para principiantes,
não é para todos e o trânsito nada mais é que uma pequena e grande parte de um problema
maior que poucos - muito poucos mesmo - estão comprometidos em solucionar. E a
solução é difícil, principalmente quando dirigimos em esferas relacionais
configuradas na desigualdade e na hierarquização e, no caso do trânsito, na
velocidade, na impunidade, na periculosidade, na diferenciação, na
individualização e na corrupção.
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*professor na FAE (Faculdade
de Educação – FAE/BH/UEMG)
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