segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

OPINIÃO: MAIS EDUCAÇÃO DENTRO E FORA DA ESCOLA


Eliana Yunes*

Toma posse hoje, como presidente da República, uma mulher. O país se distanciou bastante dos preconceitos que, subliminarmente, Machado de Assis e José de Alencar tematizaram no século XIX. Se não é preciso enveredar por uma discussão de gênero, ociosa neste caso, para tratar das expectativas, é notável a decisão da chefe de Estado de ampliar o quadro feminino de seu primeiro escalão.

Seria, portanto, legítimo supor que seu olhar pudesse ser atraído com maior sensibilidade para o papel que 38% das mulheres brasileiras desempenham como chefes de família, desdobrando-se entre os minguados ganhos que alcançam como empregadas de serviços eventuais e a obrigação de sustentarem a prole sozinhas, com o empenho de que o futuro lhes seja melhor que o seu presente. Ah, se elas tivessem podido estudar, se tivessem tido a chance de estar mais bem preparadas para as oportunidades que vieram, como D. Dilma.

O início de um novo governo coloca sempre em questão o projeto que se desenha para o futuro do país. No caso do governo Dilma, dois documentos publicados há poucas semanas permitem que centremos essa reflexão numa área sem a qual o futuro de qualquer país é impensável: a Educação. Em dezembro, foram divulgados o novo Plano Nacional de Educação e os resultados do PISA, um exame internacional que mede o desempenho de estudantes de 65 países. Lidos em sequência, os textos formam um conjunto que dá a medida atual de nossos avanços, fracassos e expectativas na área educacional.

Falta de articulação entre áreas distintas é prejudicial

Segundo o PISA, em leitura, ciências e matemáticas, vamos mal. Qual a relação entre elas? A leitura ensina a pensar, abstrair, deduzir, imaginar e criar, como testemunhou Einstein, e por isto está na base do problema geral da aprendizagem. Houve um avanço de 4% em relação a nove anos passados, parece motivo de otimismo; contudo, seguem as taxas de repetência altas, escolas isoladas, formação sofrível do mediador. Há boas novas: o aumento de investimento de 4% para 5,2% em apoio federal à escola municipal já deu resultados; o currículo único adotado em São Paulo surtiu efeitos e o aumento salarial expressivo dado a professores no Acre fez diferença.

Entre 65 países, o Brasil é 53º, com 401 pontos em 800; já fomos os piores (2000) e somos o 3º em curva ascendente; elevamos o índice de desempenho dos melhores e mantivemos o dos mais fracos: aumentamos, em verdade, a desigualdade. Países que melhoraram os índices aumentaram o investimento na Educação infantil, na escola básica e na formação inicial e continuada de professores, como propõe o MEC no PNE para a próxima década. A evasão escolar é brutal, não bastasse a repetência e a distorção grave (82%) entre série/idade. A taxa de matrícula na pré-escola é baixa, com 50% das crianças fora dela. No mundo rural e nos níveis de pobreza absoluta, a conclusão do primeiro ciclo é completada por pouquíssimos. Os desafios propostos pelo MEC são criar acesso igualitário à Educação e implementar a qualidade da formação de professores e alunos, numa tentativa de acompanhar individualmente as crianças, recomendação enfática da Unesco.

Há que pensar realisticamente em "como". Não pode ser em salas multiseriadas de 40 alunos, com três horas de aulas por dia: a escola integral, a formação continuada do professor e atenção à escolarização, ainda que tardia dos pais (EJA), aumenta a possibilidade de êxito na vida escolar do aluno. Educação é investimento de longo prazo, já estamos correndo atrás do trem da História e há solução com mais recursos já, competência aliada a conhecimento do quadro geral e processos ininterruptos de ação sistematizada e acompanhada.

"A Educação está bem encaminhada", assegurou a presidente, sem maiores detalhes. Mesmo opositores reconhecem os esforços e as articulações feitas nas várias esferas com apoio federal, nos últimos anos. Mas o sistema operacional é caótico, os trâmites burocráticos kafkianos, a desconfiança da sociedade civil enorme, a indiferença com a corrupção dos políticos idem. Não basta estar bem encaminhada, é preciso priorizar a Educação dentro e fora da escola. E sem acesso a bens culturais, a Educação se perde na instrumentalização de conteúdos sem sentido.

O ritmo atual de melhoria em Educação depende de investimento robusto e livre de desvios que valorize o professor, promova melhores condições na sala de aula, comprometa família e sociedade no acompanhamento, estabeleça metas rígidas e puna os gestores maus, para vencer o desafio de chegar antes de 2022 ao patamar de 70% dos alunos em nível de conhecimento adequado à serie. O PNE precisa mais que 7% para acelerar metas que universalizem o ensino (hoje 91%) e chegue a ter 95% dos alunos com fundamental completo, correspondendo em idade aos anos de estudo (hoje, 63%); e no ensino médio alcançar 90% frente aos atuais 50% no número dos que o concluem, no fim da década. Só mudando a escola, e isto significaria 13% do orçamento para a Educação agora, se desejamos ser, antes de 2050, a Coreia de hoje.

Não seria justo um PAC para a Educação, sem tubulações por onde fujam os maus gestores e corruptos de outras índoles que se burlam da própria escolarização? O investimento em cultura, efetivamente festejado ao atingir 1% do orçamento, não pode recuar depois de articulado o PNLL. Aprende-se a ler ainda na fase da oralidade, quando escutar e falar preparam o caminho para ler e escrever: recursos e atenção à primeira infância são decisivos para garantir que o potencial da pessoa não se esvaia antes que ela possa dominar as operações mentais e afetivas que garantam uma base para construir seu saber e seu fazer. Quanto tempo mais vamos esperar as condições para uma Educação de qualidade?

O novo PNE para 2011-2020 tem diretrizes lúcidas, metas e estratégias coerentes, mas falta muita articulação entre diferentes áreas da ação executiva: pode, por exemplo, uma escola rural não ser atendida no seu contexto por uma atuação integrada interministerial? Saúde, transporte, cultura, saneamento... Imagine a revolução que faria em todo o sistema social uma decisão desta natureza! A presidente poderia priorizar a Educação como um exemplo de ação articulada e simultânea de seus eleitos. Seus eleitores andariam quarenta anos em quatro. Mas há vontade política e capacidade de decisão para isto?

Lembremos que Educação ficou na periferia das discussões na campanha e a cultura nem foi tema, que dirá fundo! Temos nível de Educação baixo e de corrupção alto. A começar pelo uso pessoal dos recursos públicos, legitimado por uma legalidade espúria, que não pode aumentar os mínimos, mas faz inchar os máximos: como educar para o civismo, para o dever, para a ética neste quadro? Num momento em que o Rio de Janeiro procura fazer as pazes com a vida cidadã, na qual o estado de direito prevalece sobre a barbárie, devemos lembrar que a Educação é o grande desafio, para não ter que se manter o exército nas favelas reconquistadas. Que haja gratificação para as polícias das UPPs é ótimo; a Prefeitura do Rio já apoia o estado pagando R$500 por soldado e R$1 mil por comandante. Dá para fazer o mesmo com os professores das escolas das favelas e das adjacências? Por que estes valeriam menos?

Há um mês, praticamente, vivemos o histórico se vis pacem para bellum. Que bom não termos usado maniqueisticamente o poder para retomar o território ocupado ilegalmente, como se coubesse apenas uma troca de guarda, com a substituição de uns heróis armados por outros, oferecendo, sobretudo aos jovens, modelos de exceção para a vida cotidiana.

Pensemos agora no que faltou, em como estas coisas se passaram, para que toda uma juventude pudesse ser cooptada pelo poder paralelo e nele ver sua saída para a luz. Há estudos - como lembrava Calligaris, referindo-se a Winnicott - que indicam como as privações podem levar seus sobreviventes a uma resistência "heróica", posta em marcha como uma epopeia, para dobrar a moira e alcançar o Olimpo.

Tomou posse em setembro, na Secretaria Nacional da Reforma do Judiciário, um jovem advogado que nasceu e cresceu morando em favela e estudou em escola pública, sem direito a desistir, mesmo nas fases de pouca comida e muito sono, por insistência da mãe analfabeta. Marivaldo de Castro Pereira trabalhou desde os nove anos e ler mudou sua cabeça, abriu horizontes: viu que havia outro mundo! Depois de, surpreendentemente, entrar no curso de Direito na USP, atuou ativamente em movimentos sociais. Por conta disto, através de convívio com "brava gente", foi lembrado por um colega de faculdade e acabou voltando a Brasília, terra natal. Se, para ele e sua família, foi possível saírem da miséria e passarem da favela à esplanada com trabalho, seriedade e determinação gerados pela Educação, então há esperança.

Mas podemos ficar no Complexo do Alemão, onde com 11 anos o menino Reginaldo descobriu livros no lixo e neles o admirável mundo novo de pensadores. Não fez faculdade, mas integrou-se a movimentos culturais e é palestrante em universidades sobre a cultura como elemento decisivo da Educação. Resistiu no morro lendo e o tráfico o rejeitou por ser "meio" intelectual... Historiador da favela, faz análise lúcida de como a violência se instalou no Alemão. E sua visão é a mesma de antropólogos e sociólogos com quem nunca estudou, mas que certamente leu. Do livro, passou ao conhecimento crítico das políticas públicas intermitentes por conta das vaidades pessoais que abortam projetos que dão certo. Todos se sentem maiores que as causas...

É possível, sim. A porta aberta à Educação pelas práticas sociais de cultura ensina a pensar de forma mais consequente, articulada, a usar da experiência solidária para experimentar noções de respeito, colaboração, disciplina, que têm efeitos diretos na escola, na família, na comunidade.

Quem não leu deveria ler o discurso do escritor peruano Mario Vargas Llosa ao receber o Nobel de Literatura este ano: o elogio da leitura e da ficção, a insistência no domínio da palavra como "arma" para mudar o mundo, pela indução ao pensamento crítico e à sensibilidade para reconhecimento de si e do outro. As narrativas permitiram preservar a memória do tempo, com maior extensão depois da escrita; aprender a dizer emoções, ideias, fatos, situações, vivências de um jeito que dispensa a violência, como indicou Freud.

UPPs, sim, mas com reeducação dos policiais

Uma reflexão de Cristovão Buarque é desafiadora: bandido preso é bandido adotado ao custo anual de mais de R$20 mil cada um; quanto custa cada criança na escola com qualidade de ambiente, acervos, mestres, tecnologia? Basta ver o desconto autorizado pelo Imposto de Renda nos gastos com Educação!

"Para matar ervas daninhas sim, para fazer crescer as flores e os frutos muito pouco; bandidos são visíveis e incomodam; crianças não protestam, não incendeiam, e por isso prisões são mais importantes que escolas", diz o ex-ministro da Educação. Por falta de escolas muitas se perdem no crime. A violência da miséria e da fome é visível, mas a violência da exclusão, do roubo de direitos que acaba por levar à ignorância dos deveres - fruto da corrupção disseminada, que drena os recursos investidos - não conta.

UPPs, sim, mas com reEducação dos policiais, que no Japão aprendem artes marciais e... ikebana! Por que será? Sabemos que "o problema é antigo e que não será resolvido só com polícia. Sem Educação..., tudo vai para a vala", comenta Helio de La Peña. A vitória (no Complexo do Alemão), segundo a antropóloga Alba Zaluar, foi saudada com esperança e alívio, mas sem entusiasmo, com incertezas quanto ao futuro: com as tropas saindo virão escolas, profissionalização, qualidade de vida para combater a pobreza? Não a qualidade dos bens de consumo, mas a de valores, de cidadania, de direitos, de inserção no trabalho lícito?

A cidade está partida ainda, porque não se trata de uma luta de bons (aqui) contra maus (ali), como indicou Zuenir Ventura, pois não há o lado de lá sem o de cá, os chefões daqui sem os testa-de-ferro de lá. E a beligerância urbana se instaurou dissimulada nos dois lados. Aqui, como lá, falta Educação de verdade.

Utopia à parte, lembrando Monteiro Lobato, o país do pré-sal pode ser feito de homens com mais acesso ao conhecimento, em livros e outros suportes... Pena que o ex-presidente acredite que não tem mais idade para estudar e diga isso para milhões de brasileiros que ainda precisam das letras, passado o ciclo escolar ordinário!
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*ELIANA YUNES é doutora em Letras, coordenadora adjunta da Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio - Fonte: O Globo (RJ)

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