quarta-feira, 3 de novembro de 2010

PEDAGOGIA DA DISTINÇÃO: a escola como sistema de reprodução

Salomão Ferreira de Souza*

“Posso imaginar-me tudo, porque não ou nada. Se fosse alguma coisa não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano, o rei da Inglaterra não pode faz-lo, porque o rei da Inglaterra está privado de ser, em sonho, outro rei senão o rei que é. Sua realidade não o deixa sentir”. (PESSOA, Fernando, por seu auterônomo Bernardo Soares, em O livro dos desassossegos. Cia das Letras, 2006, p. 185).

A autora Anne Van Haecht (2008) faz uma análise da Teoria da Reprodução apontando, inicialmente, as principais influências de três grandes tradições sociológicas: Durkheim, por sua ruptura com o senso comum e o confronto da teoria com a empiria; Max Weber, por sua teoria sobre o método centífico e sua definição das modalidades da legitimação e, finalmente, Marx por sua situação dos sujeitos no espaço das posições sociais e pelo reconhecimento, em Althusser, do papel da escola no esquema de reprodução das relações de força.

No texto Haecht identifica cinco conceitos fundamentais para construção da teoria de Bourdieu e Passeron: poder e violência simbólica que legitima as relações de força; ação pedagógica, constitutiva da violência simbólica exercida pelos educandos do grupo familiar e professores; autoridade pedagógica pelo direito de imposição legitimada; trabalho pedagógico que cuida da formação durável (o habitus) e, por fim o próprio habitus pela interiorização do arbitrário cultural que não se acaba mesmo após o fim da pedagogia que o fixou no imaginário dos sujeitos.

A autora, em sua leitura, entende que é na família que se constroe o habitus primário, mas, é a escola que testa sua eficácia na perpetuação das relações sociais. Afirma Heacht, dessa vez tendo como base os textos A Distinção, (1979) e O Sentido Prático (1980), que Bourdieu pensa a epistemologia na sua centralidade lógica e prática à qual recorremos para agir e julgar os outros e as coisas. Dessa forma a distinção transforma pequenas diferenças em grandes como acontece entre o herdeiro e o bastardo, o primogênito e o caçula, o aprovado e o reprovado no vestibular ou concurso. Para ele, essas práticas simbólicas variam em virtude da objetividade jurídica das diferenças.

Assim as distinções são mensuradas pela qualidade de capital (simbólico ou monetário), os amigos e colegas, o grau de simpatia que acabam por determinar nossa capacidade de pertencer ou não ao grupo, ao clube ou classe social. Em “A Distinção”, Bourdieu afirma que o espaço social é definido pelo capital global e sua estrutura bem como pela evolução dessas duas espécies de capital (social e cultural) na trajetória dos agentes.

Bourdieu (1979), citado pela autora, define metaforicamente a aquisição desse capital simbólico como um espaço de jogo cujas regras seriam o que ele chama de campo e cujas habilidades, inclinações ou aptidões ele chama de habitus. A esse jogo ele denomina metáfora econômica e espacial que combina perfeitamente o campo e o interesse.

Voltando a Haecht, essa conclui que há, na análise de Bourdieu, um claro aumento na duração média dos estudos contra uma tendência de baixo rendimento desse capital. Contra essa inflação, afirma que as diferentes classes sociais se confundiram e perderam a capacidade de domínio de suas incertezas.

Anne van Haecht, após uma breve conclusão, fala das críticas ao esquema de reprodução afirmando que a racionalidade acontece pela negação, em Hegel, e que não podemos dizer que a busca dos interesses individuais contribui para o interesse geral uma vez que é a falta de clareza de seus interesses que leva o sujeito à condição de submissão; a escolha das especializações e o gosto dos indivíduos privilegiados nem sempre visam o ganho, mas a apreciação despretenciosa do assunto. A autora cita Raynaud (1987) para mostrar que Bourdieu demoniza a autonomia do sujeito. Da mesma forma Ferry e Renaut (1985) conjecturam que, se as ações práticas fazem a história, cada ação é o produto de uma determinação direta das estruturas objetivas do mundo social. Como na astúcia da razão, afirma que dessa forma a história é feita pelos sujeitos que desconhecem o que fazem. Ferry e Renaut (1985) apontam na teoria de Bourdieu uma sociologia coisificada e afirmam que a história não é um processo sem sujeito que transforma os indivíduos em autômato, subjugado pelas leis mortas de uma história da natureza.

Assim, tal como destaca a autora em debate, Raynaud (1987), Ferry e Renaut (1985) criticam Bourdieu, principalmente em seus trabalhos sobre a escola e nos estudos sociológicos, pelo determinismo que ele constroe. Lembra ela de Boudon (1977) que levanta a questão do desencarnamento dos indivíduos na sociologia de Bourdieu e os retira do determinismo simplista para colocá-los na família e também em outros grupos sociais, dispondo não somente de recursos financeiros mas de um certo capital social e refere-se a Weber para fundamentar sua crítica. Bordon rejeita esse sujeito irracional de comportamento que não pode ser interpretado pelas razões convenientes, mas por causas pré-determinadas que agiriam sobre os sujeitos sem que eles tenham consciência delas.

A leitura que podemos fazer de Bourdieu e Passeron deve levar em consideração sua visão macro da sociologia, esquecendo os pequenos fenômenos que fazem, de fato e por análise, a diferença nos rumos que cada sujeito toma em sua trajetória de construção cultural e histórica. Vale ressaltar que é nas relações familiares que se constroe o alicerce para o sujeito cultural e histórico. Situar o indivíduo social pela origem familiar e de classe a que pertence é, sociologicamente, pela própria percepção da essência da teoria de Bourdieu, dizer que não adianta o sujeito tentar construir sua própria história, ela é um destino que está escrito nas estrelas e não há muito o que fazer, mesmo porque a sociedade está munida de ferramentas que cuidam de manter essa “verdade”.

Pensando na sociologia macroscópica de Bourdieu e Passeron seria impossível conceber as revoluções. É como querer ignorar a relação dos pequenos burgos da Idade Média com o maio de 68 (Hobsbawm, 2006, p. 318-319), quando há a inversão de poder ou então ignorar as pequenas ações familiares e escolares nos movimentos que, não só apontam para novos sujeitos, novos grupos sociais, novas organizações de poder global mas, principalmente, apontam para possibilidades que vão além do desejo dos países predestinados a colonizar e daqueles que se destinam a ser colônia justificando essa distinção. Aí sim, há realmente um discurso e um grande esforço para se fazer valer a teoria macroscópica pois ela nos impede de perceber o valor das mínimas ações e pequenos fenômenos que são os verdadeiros responsáveis pela construção histórica de cada sujeito dentro de seu grupo.

Referências:

HAECHT, Anne Van. Sociologia da Educação: a escola posta a prova. Por to Alegre: Ed. Artmed, 2008.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX - 1914-1991. Companhia das Letras, 2006.


* Salomão Ferreira de Souza - é escritor e graduando em pedagogia na FAE (Faculdade de Educação) - BH - UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais) - Este trabalho tem como objetivo analisar o texto de HAECHT, Anne Van. O esquema da reprodução: da escola ao sistema de classes sociais. In: HAECHT, Anne Van, Sociologia da Educação: a escola posta a prova. Porto Alegre: Artmed, 2008, onde a autora busca em Bourdieu e Passeron elementos para justificar o discurso de distinções e o processo de reprodução negadora das rupturas.

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